Caro K,
Peço desculpas por ter escolhido esse momento para publicar a sua história. Você foi um dos primeiros em quem pensei quando comecei a reunir os retratos e perfis que compõem esse blog. Trocamos mensagens sobre a rotina insana que você se impôs para aproveitar todas as oportunidades do último ano de ensino médio, sobre as injustiças na correção da sua redação no Enem, sobre os projetos que ajudou a desenvolver na escola e agora ganham reconhecimento até da Secretaria Estadual de Educação.
A sua força para, aos 17 anos, questionar e subverter os limites das salas de aula da periferia paulistana já eram o suficiente para lançar seu retrato ao mundo. Fui surpreendida na nossa última troca de mensagens, quando você contou que “cedeu à pressão” e começou a vender trabalhos escolares para ganhar dinheiro.
O pedido de desculpas é porque, devido à natureza clandestina dessa nova atividade, sua identidade não poderá ser revelada neste texto. E você merecia um retrato completo: com nome, sobrenome e foto. Assim como o porta-retratos na cabeceira da sua mãe deveria enquadrar uma foto do filho vestido com a beca de formatura, e não aquela montagem tosca que o fotógrafo da escola lhe deu, com uma propaganda impressa sobre o seu rosto para lhe convencer a pagar R$ 200.
O mercado de trabalhos escolares, em que seu serviço vale entre 20 e 50 reais, pode não ser novidade na sua escola, mas é uma guinada na sua trajetória. Justo você, que não tem preguiça de ficar até as quatro horas da manhã estudando para uma prova e que se orgulha de manter uma boa relação com os professores mais dedicados. Será esse o valor do seu esforço? Não tem medo de pensar como eles reagiriam se descobrissem?
Aí você explicou que há anos resistia às ofertas dos colegas, só mudou de ideia graças a um professor. Um “cara show de bola” que te contou como honrou as mensalidades da faculdade de sociologia vendendo TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso), e de quebra ainda comprou um videogame. Aí ele te ganhou. Fazer uma boa faculdade e jogar videogame parecem ser as suas obsessões neste ano.
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Enquanto ainda teclávamos pelo Facebook, perguntei se não tinha crise de consciência. Você respondeu: “Me pego perguntando se é certo, ou não. ‘Alguém se sente prejudicado?’ A resposta é: ‘Não’. Então, tá tudo certo.”
Será que tá certo? Um jovem que estuda na rede pública pela manhã, atravessa a cidade para fazer estágio à tarde, volta correndo para o ensino técnico à noite e que está disposto a perder os sábados no curso de inglês não deveria ter uma fonte de renda menos clandestina?
Entendi quando você explicou porque desistiu do estágio. O salário de 320 reais (que ainda levava uma mordida de cem reais com transporte) não compensava as quatro horas diárias de trabalho mais outras quatro de deslocamento. Ainda se fosse para fazer algo interessante, mas você tem razão: carregar caixas e tirar xerox não vai contribuir para seu projeto de fazer uma universidade e se formar em jornalismo ou políticas públicas.
Na entrevista, você elaborou melhor a decisão: “Não tenho nada a perder, eu estudo mais e ganho dinheiro. Tenho que estabelecer minhas prioridades, melhorar a escola não é mais uma delas”.
Não devemos julgar a sua lógica pragmática (ou “fria e rígida”, como você a define), só você sabe das dificuldades que enfrenta. Mas suspeito que, com essa decisão, você tem sim algo a perder. Você pode estar abandonando algo valioso, combustível para a vida toda e um conceito fundamental para as profissões que aspira: a vontade de mudar o mundo.
Apesar das frustrações com tudo de errado que vivia na escola (falta de professores, aulas improvisadas, funcionários agressivos, direção refém do tráfico), você acreditou que poderia melhorar aquele espaço. Engajou-se em projetos, ajudou quem tinha dificuldade, denunciou problemas. Para fazer o que achava certo, enfrentou resistências dos colegas e até da direção. Em que momento isso perdeu o valor?
Durante a entrevista, você falou sobre um sentimento que lhe pega profundamente: “Não gosto quando me fazem de bobo”. Disse isso ao contar que, no estágio, um funcionário tomava café enquanto você empurrava caixas pesadas – função que, depois você descobriu, era dele. Usou a mesma expressão quando lembrou do domingo de dia das mães em que, aos 12 anos, foi vender flores frescas no farol para comprar flores de plástico para a sua mãe. Observou os outros meninos embolsando o dinheiro da dona do negócio, refastelando-se em coxinhas, enquanto você resistia à fome. No final, foi quem mais trabalhou e menos recebeu.
A cada vez que se via nesse papel, ficava contrariado e aprendia a “ficar esperto”, como diz. Talvez seja mesmo esse o ensinamento que a vida lhe passou. “Se até o professor faz, por que eu não?”. Aprendizado que se anuncia no topo da sua página no Facebook: “Não se pode sobreviver sendo o mocinho”.
Você cresce em condições impossíveis, ninguém pode julga-lo pelo caminho que encontrou para conquistar seu projeto. Mas será que “ficar esperto” é mesmo um ensinamento importante? Será isso “amadurecer” no Brasil?
Com essa carta-retrato, faço um convite para refletir sobre essas questões e contar sobre a sua decisão do seu ponto de vista. O espaço está aberto para a sua resposta.
A resposta do estudante “K” será publicado neste blog na segunda-feira dia 29.
Fonte: http://br.noticias.yahoo.com
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